" Existirá um momento que defina o resto da nossa existência? É uma questão estúpida e dotada de um enorme grau de hipocrisia, uma vez que, se esse momento existir - como existiu para Saldana Paris naquele comboio em direcção a Barcelona -, é tão inútil perguntar por essa ínfima possibilidade como rezar a Deus para que aconteça.
Aqueles a quem a sorte bafejou têm em mãos a ingrata tarefa de explicar aos outros que esses momentos existem apenas para os que nunca se perguntaram por eles, ou seja, o contrário do que estou a fazer neste instante. E, se assim for, anulamos a possibilidade de uma teologia e entregamos a nossa vida ás mãos do acaso, do impensado; da volatilidade a que somos condenados a partir do momento em que nos encontramos, sem qualquer razao plausivel, neste mundo. Se o acaso impera, então nascemos por acidente, sem que nenhuma entidade divina nos projectasse; na ausência dessa entidade, o tal momento definidor das nossas vidas não pode ser procurado ou salvaguardado numa oração. Ao mesmo tempo, não existe qualquer teologia que nos aquiete. A que existe repousa na refundância: Deus criou-nos somente para regressarmos a Ele. Garante-nos a vida, mas não nos garante mais nada. E a vida é, por definição, uma caminhada absurda cujo final é sempre idêntico. Por que razão não nos deixou Deus em paz, ou seja, inexistentes? Nesta lógica incongruente, o Criador coloca-nos neste mundo à mercê de tudo o que é terreno, suculento e carnal, desafia-nos a experimentar e, no final, tira-nos tudo aquilo que nos deu. Reféns da teologia, somos uma piada de mau gosto; reféns do acaso, somos vitimas da ínfima possibilidade. Nesta miséria a que estamos votados, sentimo-nos incompletos e assaz melancólicos. A essa melancolia chamamos vida adulta."
João Tordo - Biografia Involuntária dos amantes
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