"Mas o Céu não existia e o meu lugar era o inferno.
Eu sou o Minotauro, filho bastardo de Pasifae, que copulou com um touro dentro de uma vaca de madeira construida por Dédalo. Vivi no labirinto e alimentei-me de humanos, Criatura do limbo, entre a humanidade e as bestas, não tenho predador, não vim á luz da mesma forma que os homens e não deixarei descendência. Haverá descrição mais apropriada a um humano do que uma besta que se alimenta de outros humanos, que são bestas que se alimentam de outros humanos?
Ou seria apenas eu, deitado na cama de um sinuoso farol, que me ajustava, como a mão á luva, a essa descrição tão antiga e tão certeira?
Eu e A. Partilhámos o sangue de uma outra criatura, que nasceu para logo perecer. Somos familia e seremos sempre familia, ainda que, corroborando as tragédias da antiga Grécia, o sejamos para fatalmente deixarmos de o ser, uma vez que o que nos constitui com mais força é o romper dos laços que nos unem aos outros - esse romper desumano em que cada um se afasta para um lado, duas linhas paralelas percorridas em sentidos diferentes, em que só tornaremos a avistar o outro se a vida se duplicar, e a vida não se duplica. Termos deixado de ser, eis a súmula dos meus dias. Pouco me resta senão vaguear pelo labirinto, onde entrei á tua procura, sem saber que estavas fora dele, procurando-te como quem procura uma moeda caída na boca do lobo de uma sarjeta inundada de água sujissima. Decerto que há muito tempo que me esqueceste. Encontraste Teseu, que, á saida do labirinto, te devolveu a ponta do novelo manchado de sangue. Eu permaneço aqui, porque é esse o destino das bestas ou dos que nasceram com cabeça de touro.
Mas mesmo as bestas têm memória, ainda que sejam fragmentos de lugares tão distantes que são apenas ecos ou sombras de sonhos ( já os gregos o sabiam).
Nessa memória, assaz frágil, encontro-te vezes sem conta. Mesmo quando não te procuro sussurras-me. Por mais vezes que eu esmurre o fantasma do Castro, nada depende de mim. Vagueio ás cegas pelo labirinto, mujo com uma dor insuportavel e tu ignoras a minha fadiga (que é tanta), um touro velho que marra incessantemente contra a parede de um corredor escuro."
João Tordo - O luto de Elias Gro
A maneira como João Tordo escreve, deixa me sem palavras. É um dos melhores escritores que anda por aí...
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